quinta-feira, 7 de outubro de 2010

DE TAMANCO

Santos Miguelito acordou de súbito, assustado por ter adormecido. Como pôde? Um perigo!

Ainda estava entrincheirado na vala do esgoto, uma obra que a Prefeitura de Teresina nunca terminara. Passava das duas da madrugada e esperava o meliante da Zona Norte, um vadio arrombador de casas; e Miguelito, ex-soldado, bisneto de coronel da Guarda Nacional, propôs-se a solucionar o problema, dado o mal estar constante causado por esse "tresmalhado dos diabos". Não pediu auxílio à polícia nem aos demais vizinhos, resolveria sozinho, era macho.

Sua única companhia: um velho bacamarte que conservava funcionante, antigo amuleto herdado de muitas gerações de sua família. Homens valentes, heróis, cavaleiros e abaetês tombaram com o chumbo da arma bocuda. O peso, o brilho do verniz na madeira, o diâmetro da bocarra mais parecendo uma trombeta e até mesmo a indestrutível ferrugem da arma avoenga dava-lhe ares de virilidade e poder, era como o cajado dos antigos patriarcas romanos.

Um pesadelo o fez acordar. Em uma luta mortal, Miguelito fora atingido por um fêmur humano, cambaleou ferido e pulou num rio de águas negras, sujas, de peixes mortos, um rio sem vida. Nadou muito na esperança de fuga, pois, no seu encalço um monstro disforme bafejava faminto, até o instante em que surge logo a sua frente o Cabeça de Cuia a dizer: "vou arrombar sua casa!". Assim, acordou sobressaltado.

Meteu a mão na xicaca de provimentos que levara. No meio da pólvora e dos chumbos apanhou o litro de uma boa 'serrana' vinda dos confins da Serra Grande, já consumida pela metade. Sempre bebera para sossegar seus medos. Talvez no seu íntimo fosse mesmo um fraco. Sobreviveu a quatro casamentos infelizes e vivia sozinho. O último deles acabou porque a mulher esqueceu o seu aniversário e salgou muito o peixe do jantar. "Casar é penar", repetia sempre aos amigos e tinha realmente bons companheiros. Era em que acreditava, no poder da amizade. O amor verdadeiro parecia-lhe distante, exceto quando pensava numa linda rapariga cor de jambo: Rosa!

Deu mais um gole e escreveu em um papel a corografia da rua, estudando um pouco a região, caso o malandro resolvesse abordar por outra esquina. Reviu pela décima vez a munição e utilizou um soquete para apertar a pólvora e os chumbos já postos na arma. Tomou outro gole, agravando o efeito da aguardente.

Pensava lento agora, recordando a última noite com Rosinha. Não queria lembrar, pois, o seu machismo e suas cicatrizes o protegiam contra novos sofrimentos, mas, no esforço de esquecer surpreendia-se pensando nela. Não! De novo! É possível cometer tantos enganos na vida? Já no seu outono, Miguelito teria encontrado sua quinta cara-metade.

Últimos goles e o litro secou. Deram quatro horas da madrugada no relógio e ao longe as árvores balançavam gordas e morosas. O vento trazendo um frescor atípico das noites de agosto e um cheiro almiscarado tão conhecido de Miguelito: Rosinha! Seria possível? Ela viria ao seu encontro no bairro? Uma preocupação povoou sua mente: se alguém os apanhassem, como ficaria a sua reputação de machista convicto?

Alguns sons chegavam vagos pelo vento. Parecia o ressoar de tambores de algum culto cabalístico.

Aproximando-se... aproximaram-se. Os sons tornaram-se nítidos agora. "Claro!" - pensou Miguelito - "são os tamancos de Rosinha!".

E o homem levantou-se cambaleante. Aproximou-se sem muito enxergar mas viu o que pensava: ela, vestida de verde com um largo sorriso estampado. Aproximou-se ainda mais. Ela parou a cerca de vinte metros. Miguelito arrastava o corpo alcoolizado no mesmo instante em que a figura oposta esgueirou-se pelo muro, talvez na tentativa de fugir da abordagem.

Rosa, aos olhos do pobre ébrio, demonstrava melhoras fisicamente, mais alta, mais robusta, e isso aumentava o desejo de estar com ela, esquecendo-se mesmo de seus preconceitos e da opinião escarninha dos seus amigos.

Os dois ofegantes estavam a dois metros. O velho coração de Miguelito rendeu-se à beleza perturbadora, as mãos frias, suadas, o estômago como se traspassado por uma lâmina de aço gelado, e assim, do nada, surgiu um ímpeto incontrolável de abraçá-la e beijá-la. Nessa hora, Miguelito ameaçou correr ao encontro dela mas tropeça nos entulhos da construção, caindo nos fortes braços da moça. Cego pela emoção e pela embriaguez, beijou Rosinha com sofreguidão.

Acordou no outro dia, no Hospital Getúlio Vargas, com um nariz quebrado, um olho roxo e duas páginas de processo por atentado violento ao pudor e desacato, enquanto um multidão de curiosos esperava para ver, do lado de fora, o homem que beijou o Crispim, um policial bigodudo que fazia a ronda no bairro.

(Publicado originalmente na revista De Repente, n° 30, novembro/2002, pág. 09, órgão de divulgação internacional da Fundação Nordestina do Cordel - FUNCOR).

Nenhum comentário:

Postar um comentário