quinta-feira, 7 de outubro de 2010


A Calúnia de Apelles é uma pintura de Botticelli.

Como o nome já diz é quase num cenário de julgamento onde aparecem homens de capa preta, mulheres ao redor consolando e outras tentando aliviar para o lado do culpado, lembra um pouco a injustiça feita para com Jesus Cristo, aparece também na pintura um homem coberto de suas partes íntimas somente caído no chão e com as mãos unidas como se rezasse.

O julgamento de Apeles é como muitos outros que conhecemos.

O rei ou juiz está acompanhado pela Ignorância e pela Suspeita, suas conselheiras. Estas murmuram-lhe constantemente ao ouvido palavras venenosas, razão pela qual ele tem orelhas de burro. De olhos virados para o chão, ele nem vê o que se passa.

A Inveja vem perante ele, acusadora, e estende um braço muito comprido para o alcançar. Traz a Calúnia pela mão.

A Calúnia tem uma tocha acesa na mão como se viesse mostrar a luz. A Malícia e a Fraude são as suas companheiras e não param de a adornar com flores, os atributos da pureza, que entrançam nos cabelos da sua senhora, procurando disfarçá-la.

Apeles vem, na figura de um homem inocente, arrastado pela Calúnia que o agarra pelos cabelos, acusadora. Ele está despido e de mãos juntas, apelando a uma justiça divina, superior àquela terrível fantochada.

Atrás deles, a horrível figura do Remorso olha sorrateiramente, por cima do ombro, para a Verdade.

A Verdade aponta para cima, remetendo o inocente à justiça divina, e aparece nua, sem nada para esconder, tal como Apeles.

Todos os outros ocultam a sua verdadeira natureza com muita roupa, alguns até evocando a pureza.

DE TAMANCO

Santos Miguelito acordou de súbito, assustado por ter adormecido. Como pôde? Um perigo!

Ainda estava entrincheirado na vala do esgoto, uma obra que a Prefeitura de Teresina nunca terminara. Passava das duas da madrugada e esperava o meliante da Zona Norte, um vadio arrombador de casas; e Miguelito, ex-soldado, bisneto de coronel da Guarda Nacional, propôs-se a solucionar o problema, dado o mal estar constante causado por esse "tresmalhado dos diabos". Não pediu auxílio à polícia nem aos demais vizinhos, resolveria sozinho, era macho.

Sua única companhia: um velho bacamarte que conservava funcionante, antigo amuleto herdado de muitas gerações de sua família. Homens valentes, heróis, cavaleiros e abaetês tombaram com o chumbo da arma bocuda. O peso, o brilho do verniz na madeira, o diâmetro da bocarra mais parecendo uma trombeta e até mesmo a indestrutível ferrugem da arma avoenga dava-lhe ares de virilidade e poder, era como o cajado dos antigos patriarcas romanos.

Um pesadelo o fez acordar. Em uma luta mortal, Miguelito fora atingido por um fêmur humano, cambaleou ferido e pulou num rio de águas negras, sujas, de peixes mortos, um rio sem vida. Nadou muito na esperança de fuga, pois, no seu encalço um monstro disforme bafejava faminto, até o instante em que surge logo a sua frente o Cabeça de Cuia a dizer: "vou arrombar sua casa!". Assim, acordou sobressaltado.

Meteu a mão na xicaca de provimentos que levara. No meio da pólvora e dos chumbos apanhou o litro de uma boa 'serrana' vinda dos confins da Serra Grande, já consumida pela metade. Sempre bebera para sossegar seus medos. Talvez no seu íntimo fosse mesmo um fraco. Sobreviveu a quatro casamentos infelizes e vivia sozinho. O último deles acabou porque a mulher esqueceu o seu aniversário e salgou muito o peixe do jantar. "Casar é penar", repetia sempre aos amigos e tinha realmente bons companheiros. Era em que acreditava, no poder da amizade. O amor verdadeiro parecia-lhe distante, exceto quando pensava numa linda rapariga cor de jambo: Rosa!

Deu mais um gole e escreveu em um papel a corografia da rua, estudando um pouco a região, caso o malandro resolvesse abordar por outra esquina. Reviu pela décima vez a munição e utilizou um soquete para apertar a pólvora e os chumbos já postos na arma. Tomou outro gole, agravando o efeito da aguardente.

Pensava lento agora, recordando a última noite com Rosinha. Não queria lembrar, pois, o seu machismo e suas cicatrizes o protegiam contra novos sofrimentos, mas, no esforço de esquecer surpreendia-se pensando nela. Não! De novo! É possível cometer tantos enganos na vida? Já no seu outono, Miguelito teria encontrado sua quinta cara-metade.

Últimos goles e o litro secou. Deram quatro horas da madrugada no relógio e ao longe as árvores balançavam gordas e morosas. O vento trazendo um frescor atípico das noites de agosto e um cheiro almiscarado tão conhecido de Miguelito: Rosinha! Seria possível? Ela viria ao seu encontro no bairro? Uma preocupação povoou sua mente: se alguém os apanhassem, como ficaria a sua reputação de machista convicto?

Alguns sons chegavam vagos pelo vento. Parecia o ressoar de tambores de algum culto cabalístico.

Aproximando-se... aproximaram-se. Os sons tornaram-se nítidos agora. "Claro!" - pensou Miguelito - "são os tamancos de Rosinha!".

E o homem levantou-se cambaleante. Aproximou-se sem muito enxergar mas viu o que pensava: ela, vestida de verde com um largo sorriso estampado. Aproximou-se ainda mais. Ela parou a cerca de vinte metros. Miguelito arrastava o corpo alcoolizado no mesmo instante em que a figura oposta esgueirou-se pelo muro, talvez na tentativa de fugir da abordagem.

Rosa, aos olhos do pobre ébrio, demonstrava melhoras fisicamente, mais alta, mais robusta, e isso aumentava o desejo de estar com ela, esquecendo-se mesmo de seus preconceitos e da opinião escarninha dos seus amigos.

Os dois ofegantes estavam a dois metros. O velho coração de Miguelito rendeu-se à beleza perturbadora, as mãos frias, suadas, o estômago como se traspassado por uma lâmina de aço gelado, e assim, do nada, surgiu um ímpeto incontrolável de abraçá-la e beijá-la. Nessa hora, Miguelito ameaçou correr ao encontro dela mas tropeça nos entulhos da construção, caindo nos fortes braços da moça. Cego pela emoção e pela embriaguez, beijou Rosinha com sofreguidão.

Acordou no outro dia, no Hospital Getúlio Vargas, com um nariz quebrado, um olho roxo e duas páginas de processo por atentado violento ao pudor e desacato, enquanto um multidão de curiosos esperava para ver, do lado de fora, o homem que beijou o Crispim, um policial bigodudo que fazia a ronda no bairro.

(Publicado originalmente na revista De Repente, n° 30, novembro/2002, pág. 09, órgão de divulgação internacional da Fundação Nordestina do Cordel - FUNCOR).

Ne Sutor Ultra Crepidam!

Reza a História que, já lá vão mais de 2300 anos, o famoso pintor grego Apeles, a quem devemos o não menos famoso retrato de Alexandre, o Grande, costumava expor as suas pinturas na praça pública, escondendo-se atrás dos quadros para ouvir a opinião dos que por ali passavam. Quando concordava com as críticas, retirava as suas obras, refazia-as e voltava a exibi-las para novos comentários. Um certo dia, um sapateiro teria notado um defeito no modo como estava retratado o chinelo de um dos figurantes na tela e não poupou críticas a tal fato. Apeles foi receptivo às críticas e corrigiu as imperfeições. Envaidecido, o sapateiro resolveu criticar as pernas da figura retratada. Apeles tereria então saído de trás do quadro e pronunciado a célebre frase "Não suba o sapateiro acima da sandália", que ainda hoje utilizamos quando somos alvo de críticas por parte de pessoas a quem não reconhecemos conhecimentos para tal.

Amigos, pensem nisso, quantas vezes criticamos sem bem refletir ou mesmo sem lastro intelectual.